A QUESTÃO NÃO É SE PAPAI NOEL EXISTE OU NÃO

21 de dezembro de 2018

Quando o Natal bate à porta de sua casa, Jorge Antônio acolhe o nascimento de Jesus Cristo como Papai Noel. Sala de visita ambientada com árvore fecunda de presentes. Luz direcionada à cadeira de Noel quando ele chegar. Sobre almofadas distribuídas na sala, crianças e pais emocionados à espera do Bom Velhinho. Transfigurado pela imagem de Papai Noel, Jorge solta seu “ho ho ho”, e a porta da casa se abre para a irrealidade entrar na forma de um homem idoso; ele se faz presente não só para entregar presentes às crianças, mas para deixar uma mensagem a cada uma delas. A questão aqui não é se Papai Noel existe ou não, e sim que a fantasia tem algo profundo a dizer às crianças; ela faz falar o que a realidade social dos adultos enfraquece, diminui, inferioriza, deforma. Ao acolher a inocência infantil, a fantasia a protege com a fortaleza da ternura, com os muros delicados do bem-querer; e, assim sendo, Papai Noel abre uma possibilidade de encontro que Jorge Antônio, por si mesmo, não abriria por lhe faltar a força afetiva de um sensível que se excede. Jorge conhece os netos. Por essa razão, seu amor por eles pode, com carinho, chamar a atenção de cada um, dizendo a David, por exemplo, que ele não pode desrespeitar a sua mãe. “Você já imaginou, David, viver sem sua mãe?”, pergunta Noel. “Eu não ia parar de sentir dor”. “E você gosta de sentir dor?”. “Não, Papai Noel!”. “Então você não acha que sua bondosa mamãe merece desculpas e merece ouvir de ti que você a ama?”. “Acho, Papai Noel, mas como o senhor sabe que xinguei ela?”. David não sabe que Noel é o pai de sua mãe, ou seja, a fantasia oculta o avô Jorge (ou o real) para deixar o mistério: “Como o senhor sabe que xinguei ela?”. O senso comum crê que a fantasia distancia a criança da realidade; porém, por meio do avô Jorge, a fantasia é uma forma afetiva de questionar a realidade de David. A fantasia zela pelo respeito, pela gratidão; não afasta a criança da realidade, mas oferta a ela uma “sensação excedente” na realidade. A fantasia fala do que nos falta ou do que a realidade nos arrancou; ela não nos distancia da realidade, mas nos aproxima dela para incomodá-la, no sentido de que a realidade se encontra desajustada, por exemplo, um filho xingar a mãe ou a mãe xingar o filho. O Papai Noel, realizado pela família, tem o tempo precioso para contar “estórias”, sendo o Bom Velhinho, portanto, aquele que encarna a imagem expressiva do narrador, que escolhe uma narrativa para acolher a mensagem natalina destinada a suas crianças, crianças que não sabem que Papai Noel é o vovô Jorge. Mistério. Assim, por causa de sua natureza misteriosa, o Papai Noel da família é experiência mítica que possibilita a inocência escapar de uma vida dominada de modo realista. “Seu grande amigo Jorge Antônio faleceu”, disse-me o destino. Papai Noel da família agora é o filho mais velho, o que é bem diferente de o Bom Velhinho estar em shopping, pois, nesse ambiente antinatalino, todo Noel não passa de um estranho disfarçado dentro de uma máquina comercial, com a pretensa boa intenção de encantar o consumo infantil. Se Papai Noel de shopping tem algum amor à criança, esse amor não resiste à falta de salário. O “ho ho ho” de shopping center é risada de um empregado idoso a cumprir jornada de trabalho, não havendo, portanto, nenhuma gratuidade em seu sorriso. O Noel de shopping não quer saber se um dos netos de Jorge xingou a mãe, mesmo porque David não passa da 81ª criança que se senta hoje no colo do Bom Velhinho, onde não há tempo de David escutar algum conselho sobre respeitar os pais. E, mesmo se houvesse, inútil seria, pois esse Papai Noel desconhece as 100 crianças/dia (meta do funcionário) que se sentaram em seu colo. Uma selfie com esse tipo de Noel é o máximo que a inocência consegue de uma produção em série. Papai Noel de shopping não é fantasia, mas objeto alienado pelo capital e a serviço do comércio para aquecer as vendas, ditas natalinas. Lugar sedutor de hiperconsumo, onde as palavras são usadas para identificar objetos, o shopping submete a fala de Noel à condição imediata de uso em um lugar onde a palavra não foge à utilidade. Poucos avós levam aos lares mensagens aos netos por meio da força simbólico-afetiva do Bom Velhinho. No meu amigo Jorge Antônio, havia certo grau de desobediência civil quando se transfigurava de Papai Noel. Muitos levam netos ao shopping; nesse espaço, porém, um estranho se disfarça de Bom Velhinho, desconhece a vida de cada criança e obedece ao uso utilitário do capital.

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